Consultor Jurídico - 18.12.2019
Temos afirmado que o Direito é um sistema de limites ao poder, e, como o Estado é o maior titular de poder, é natural que seja o maior violador do Direito, pois os poderosos não costumam se sujeitar a limitações.
Neste pequeno artigo vamos estudar alguns aspectos da Medida Provisória nº 899, de 16 de outubro de 2019, que constitui um exemplo típico do que acabamos de afirmar, vale dizer, uma violação do Direito. Começaremos examinando o conceito de tributo e a legalidade tributária. Em seguida veremos o instituto da transação no Direito Tributário. Depois, como devemos interpretar regras jurídicas que estabelecem exceções. Estudaremos os pontos da MP 899 que mais nos despertam preocupação e, por fim, formularemos nossas conclusões.
- O conceito de tributo
O Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de l988, estabelece:
“Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
Sendo assim, o tributo, por definição legal, é prestação pecuniária que decorre da lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Em outras palavras, sua cobrança deve ser feita independentemente da vontade das partes que integram a relação jurídica tributária, especialmente livre da vontade do fisco. O princípio/regra da legalidade tributária é inafastável, sem espaço para atos discricionários.
- Legalidade tributária
A legalidade tributária é estrita e alcança a todos os atos que levem à cobrança do tributo. Está positivado no art. 150, I, da CF/1988, bem como no art. 97 do CTN, observando que o tributo somente estará validamente criado quando a lei estabelecer todos os elementos necessários à sua cobrança: (a) hipótese de incidência; (b) base de cálculo; (c) alíquota; (d) identificação do sujeito passivo e (e) sujeito ativo da relação, quando for diverso daquela pessoa jurídica de direito público que editar a lei.
Além disso, a legalidade tributária envolve toda a atividade da administração fazendária, inclusive e, especialmente, o lançamento e a posterior cobrança do tributo. Por isso, é mais adequado identificá-la como princípio/regra da garantia da reserva absoluta de lei tributária, uma vez que é muito mais ampla que o princípio da legalidade e não admite qualquer ponderação com outros princípios, nem abre o menor espaço para atos discricionários. É importante perceber que a cobrança do tributo envolve, necessariamente, a sua não cobrança, ou seja, abrange a dispensa do seu pagamento em todas as suas formas: remissão, anistia e transação.
Nas palavras de Alberto Xavier: “Reserva ‘absoluta’ significa a exigência constitucional de que a lei deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão do órgão de aplicação do direito no caso concreto, ao invés do que sucede na ‘reserva relativa’, em que muito embora seja indispensável à lei como fundamento para as intervenções da Administração nas esferas de liberdade e de prioridade dos cidadãos, ela não tem que fornecer necessariamente o critério de decisão no caso concreto, que o legislador pode confiar à livre valoração do órgão de aplicação do direito, administrador ou juiz. A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em
lex stricta (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independentemente de qualquer valoração pessoal.”
[1]
Fácil concluir, portanto, que a garantia da reserva absoluta de lei tributária somente se mostrará completa e eficaz a garantir um mínimo de segurança jurídica ao cidadão contribuinte, quando a hipótese de incidência do tributo prevista na lei não puder, de modo algum, ser alargada ou estreitada pelo seu aplicador. Desse modo, a dispensa do pagamento do tributo, seja em razão de remissão, anistia ou transação, deve permanecer ao alcance de todos os que se encontrem na mesma situação, sem espaço para escolhas ou favorecimentos a critério da autoridade fiscal.
- A transação do Direito Tributário
É certo que o Código Tributário Nacional admite a prática de transação, estabelecendo:
“Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em terminação do litígio e consequente extinção de crédito tributário.
Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.”
Entretanto, como facilmente se pode ver do dispositivo acima transcrito, a transação é admitida em caráter excepcional, apenas para por fim a litígio e ensejar a extinção de crédito tributário, devendo a lei indicar todas as condições, inclusive, a autoridade competente para autorizá-la em cada caso.
Nesse dispositivo o CTN renova a determinação de que a atividade lançadora deve ser plenamente vinculada, mesmo quando leve à extinção do crédito tributário pela transação, ou seja, nesses casos também não há espaço para decisões com base em oportunidade e conveniência do fisco.
A Medida Provisória 899 amplia de tal forma a possibilidade de transação tributária, que poderá implicar na concessão de importantes benefícios apenas para quem o Fisco decidir os conceder, dispondo expressamente que a União, em juízo de oportunidade e conveniência, poderá celebrar transação de forma individual, por iniciativa do fisco ou do contribuinte.
Assim é que Hugo de Brito Machado Segundo afirma:
“Nesse cenário, surge a Medida Provisória 899/2019 editada em 16 de outubro p.p., a disciplinar o instituto da “transação tributária”, prevista no art. 171 do Código Tributário Nacional. Em termos muito simples, e diretos, pode-se dizer que ela institui mais um REFIS, só que passível de concessão a qualquer tempo (não há mais “janelas” para adesão), e apenas
para quem o Fisco decidir conceder. Reavivam-se, com isso, diversos debates, que há muito giram em torno do instituto da transação tributária. E se adicionaram outros, decorrentes de algumas disposições criativamente inseridas no aludido diploma legal.”
[2]
A ofensa ao princípio/regra da legalidade tributária promovida pela MP 899 nos parece evidente.
- A interpretação das exceções
É sabido que as normas que estabelecem exceções, por sua própria natureza, não podem ser ampliadas, ao contrário devem sempre ser interpretadas restritivamente.
Como afirma Carlos Maximiliano,
“As leis de finanças, as disposições instituidoras de impostos, taxas, multas e outros ônus fiscais, só abrangem os casos que especificam; não comportam o emprego do processo analógico.”
[3]
O instituto excepcional da transação, portanto, não pode ter a amplitude que lhe foi dada pela MP 899.
- Transação tributária e Medida Provisória
A Constituição Federal, em seu art. 62, § 1º, inciso III, estabelece que é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria reservada a lei complementar.
O CTN, por sua vez, adquiriu o status de lei complementar, embora tenha sido elaborado como lei ordinária.
Realmente, quando em face de uma ruptura do sistema jurídico surge uma nova Constituição, todas as normas que compunham o ordenamento anterior são recebidas pela nova ordem constitucional, na categoria jurídica que passou a ser exigida para a sua elaboração, desde que sejam com esta materialmente compatível, não importando como foram feitas, nem a categoria que integravam. Foi o que se deu com o Decreto nº 70.235, que embora seja originalmente um decreto, foi recepcionado como lei, porque trata de matéria sujeita ao princípio da legalidade, e com o Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, que foi elaborado como lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar, porque trata de normas gerais de Direito Tributário (CF/88 art. 146, III).
A medida provisória 899, ao autorizar que o fisco use a transação no âmbito de sua oportunidade e conveniência, altera indevidamente o CTN invadindo a competência reservada à lei complementar.
- Crédito tributário e pedido de falência
Há muito tempo o Superior Tribunal de Justiça orientou sua jurisprudência afastando a possibilidade de a Fazenda Pública pedir a falência do contribuinte, pois
“afigura-se impróprio o requerimento de falência do contribuinte comerciante pela Fazenda Pública, na medida em que esta dispõe de instrumento específico para cobrança do crédito tributário.
Ademais, revela-se ilógico o pedido de quebra, seguido de sua decretação, para logo após informar-se ao Juízo que o crédito tributário não se submete ao concurso falimentar, consoante dicção do art. 187 do CTN.
O pedido de falência não pode servir de instrumento de coação moral para satisfação de crédito tributário. A referida coação resta configurada na medida em que o art. 11, § 2º, do Decreto-Lei 7.661/45 permite o depósito elisivo da falência.”
[4]
A MP 899 tenta contornar esse entendimento estabelecendo que na rescisão da transação a Fazenda Pública poderá requerer a convolação da recuperação judicial em falência ou a ajuizar ação de falência conforme o caso (art. 8º, II).
Tal iniciativa viola o art. 187 do CTN e cria uma inadmissível sanção política, na medida em que coloca o pedido de falência como instrumento de coação moral para satisfação de crédito tributário, contrariando não só a jurisprudência do STJ, como também a orientação do STF, que há muito repele as sanções políticas e tratou o tema com repercussão geral.
[5]
- Conclusões
AMedida Provisória nº 899, de 16 de outubro de 2019, é flagrantemente inconstitucional, pois: (a) viola o princípio/regra da legalidade tributária; (b) invade matéria reservada à lei complementar; e (c) institui sanção política.
[1] Alberto Xavier –
Tipicidade da Tributação Simulação e Norma Antielisiva, Dialética : SP, 2001, pág. 17/18.
[2] Hugo de Brito Machado Segundo, MP do “contribuinte legal” reacende a discussão sobre a transação tributária, em Consultor Tributário de 21/11/2019.
[3] Carlos Maximiliano,
Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1996, p.213.
[4] STJ – RESP nº 287.824 – MG
[5] STF – ARE 914045 RG/MG – Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo, Julg. 15/10/2015.
Hugo de Brito Machado é professor titular de Direito Tributário da Universidade Federal do Ceará (UFC), desembargador federal aposentado do TRF-5 e membro da Academia Brasileira de Direito Tributário, da Associação Brasileira de Direito Financeiro, da Academia Internacional de Direito e Economia, do Instituto Ibero-Americano de Direito Público e da International Fiscal Association.
Schubert de Farias Machado é advogado; diretor do Instituto Cearense de Estudos Tributários e membro do Instituto dos Advogados do Ceará.