A discussão que abordaremos neste artigo é de longa data conhecida pelo Carf. Trata-se da interminável batalha travada pelos contribuintes que adquirem produtos isentos de estabelecimento instalado na região amazônica e anseiam por fazer jus ao crédito de IPI referente a tais compras.
Antes, todavia, de tratar de como a questão vem sendo abordada pela jurisprudência do Carf, mister se faz contextualizar a discussão em apreço.
Em síntese, a fornecedora dos produtos objeto das autuações fiscais que chegam ao Carf goza de uma dupla isenção. A primeira delas é aquela capitulada no art. 9º do Decreto-Lei n. 288/67[1], a qual não prevê o respectivo crédito presumido de IPI para os adquirentes e que, por isso, gerou demandas judiciais buscando tal direito.
A outra isenção prevista é aquela destinada a produtos industrializados na Amazônia Ocidental com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional baseada no art. 6º do Decreto-Lei nº 1.435/75[2]. Esta isenção, por sua vez, outorga crédito para as aquisições dos produtos isentos, desde que preenchidas as condições ali estabelecidas.
A fiscalização, de seu lado, contrapõe-se à pretensão dos contribuintes pelo crédito, porque julga serem inaplicáveis as decisões proferidas pelo Judiciário às empresas do setor (art. 9º do Decreto-Lei n. 288/67), além de entender que os requisitos legais para a tomada dos créditos não estão preenchidos (art. 6º do Decreto-Lei nº 1.435/75).
Essa antiga discussão -que implica quase sempre na existência de ações individuais e/ou coletivas manejadas pelas empresas para ver seus direitos consagrados pelo Poder Judiciário– foi objeto de julgamento pelo STF no RE 592.891, com repercussão geral reconhecida (tema 322), redundando em decisão favorável ao pleito dos contribuintes[3].
Todavia, esse julgamento não foi capaz de colocar uma pá de cal sobre processos que tramitam administrativamente perante o Carf. A uma porque tal decisão ainda não transitou em julgado. A duas porque, nos últimos anos, a Receita Federal somou à discussão ponto relativo à classificação fiscal adotada pelos contribuintes, argumento esse que, por si só, seria capaz de manter as autuações fiscais em sua integralidade.
Quanto ao primeiro problema acima apontado (inexistência de trânsito e o momento da vinculação da instância administrativa aos precedentes vinculantes), a questão é análoga ao problema enfrentando no caso da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, o que já foi objeto de análise nesta coluna[4].
Já no que diz respeito ao segundo ponto alhures destacado, o problema circunda quanto à forma de cálculo do crédito. Os lançamentos tributários afirmam que os contribuintes teriam recebido os componentes dos kits como se fosse um produto único, sem discriminação da classificação fiscal e valor de cada item embalado individualmente e, portanto, não seria possível determinar o valor tributável referente aos componentes que se classificam no código 3302.10.00, impedindo que se determine, por conseguinte, a parcela do crédito a que faria jus.
Traçado esse cenário, podemos dizer que atualmente o Carf precisa enfrentar em seus acórdãos as seguintes questões: i) existe decisão judicial, em ação individual, coletiva ou de efeitos vinculantes, que garanta o direito ao crédito do contribuinte com base art. 9º do Decreto-Lei n. 288/67[5]?; ii) na hipótese negativa, foram preenchidos os requisitos legais para que o contribuinte goze do crédito presumido estampado art. 6º do Decreto-Lei nº 1.435/75?[6]; iii) a classificação fiscal adotada pelo contribuinte no NCM código 2106.90.10 Ex 01 é correta?
Além dos citados tópicos principais, normalmente o Carf se debruça sobre argumentos subsidiários acerca iv) da impossibilidade de alteração de critérios jurídicos (artigo 146 do CTN), uma vez que a Suframa em seus atos teria garantido o crédito aos produtos fabricados em projeto industrial aprovado para fruição de benefícios fiscais[7]; v) da não responsabilidade do terceiro adquirente do concentrado por suposto erro na classificação fiscal[8]; vi) da possibilidade de exigência da multa, haja vista o conteúdo do art. 76, II, a, da Lei nº 4.502[9].
Ante a limitação de espaço para abordar detalhadamente todos os temas aqui tratados, limitar-se-á a análise ao item “iii” acima referido, ou seja, se a classificação fiscal adotada pelo contribuinte no NCM código 2106.90.10 Ex 01 é ou não a correta.
Historicamente a fornecedora dos insumos adquiridos para fabricação dos refrigerantes dá saída a seus produtos sob a forma de conjuntos denominados kits, cujos componentes individuais são acondicionados em embalagens separadas. A este conjunto, os contribuintes se referem como “concentrado para elaboração de refrigerantes”, motivo pelo qual classifica o kit no código 2106.90.10 Ex 01.
Entretanto, segundo a fiscalização, nos casos em que os fabricantes comercializam um conjunto de partes, peças, matérias ou artigos, cada bem individual que compõe o conjunto deveria ser classificado separadamente. A classificação fiscal não poderia ser efetuada de acordo com as características que o produto só teria em etapas futuras da cadeia produtiva, realizadas em outro estabelecimento industrial.
Tal questão foi debatida no Acórdão Carf nº 3402-003.801 que, por voto de qualidade, assim decidiu neste tópico:
IPI. CLASSIFICAÇÃO FISCAL. KITS DE CONCENTRADOS PARA PRODUÇÃO DE REFRIGERANTES.
Nas hipóteses em que a mercadoria descrita como kit ou concentrado para refrigerantes constitui-se de um conjunto cujas partes consistem em diferentes matérias-primas e produtos intermediários que só se tornam efetivamente uma preparação composta para elaboração de bebidas em decorrência de nova etapa de industrialização ocorrida no estabelecimento adquirente, cada um dos componentes desses kits deverá ser classificado no código próprio da TIPI.
Percebe-se, pois, que para tal entendimento, a posição do STF (RE 592.891) para a matéria não é suficiente para a manutenção dos créditos do IPI, uma vez que a questão da classificação fiscal seria motivo autônomo para a glosa de tais créditos. E assim tem prevalecido na maioria dos julgados a respeito do tema, conforme se observa, exemplarmente, dos seguintes acórdãos: 3301-005.953 e 3401-005.943.
Não é esse, todavia, o entendimento externado no acórdão n. 3201-005.423, que apesar de também defender a classificação autônoma das partes componentes dos kits, decidiu pela manutenção parcial ao direito do crédito com base no precedente Pretoriano, restando este tópico assim ementado:
CLASSIFICAÇÃO FISCAL. KITS PARA PRODUÇÃO DE REFRIGERANTES.
Nas hipóteses em que a mercadoria descrita como kit ou concentrado para refrigerantes constitui-se de um conjunto cujas partes consistem em diferentes matérias-primas e produtos intermediários que só se tornam efetivamente uma preparação composta para elaboração de bebidas em decorrência de nova etapa de industrialização ocorrida no estabelecimento adquirente, cada um dos componentes desses kits deverá ser classificado no código próprio da TIPI.
CRÉDITOS DE IPI. DIREITO. AQUISIÇÃO DE INSUMOS ISENTOS.
O Supremo Tribunal Federal STF por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário autuado sob o nº 592.891, em sede de repercussão geral, decidiu que "Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT".
Tendo em vista que o precedente do STF ainda é recente, a análise quanto à sua repercussão deverá ser enfrentada pela atual composição da Câmara Superior de Recursos Fiscais, de modo a definir se tal decisão tem o condão de, per si, encerrar a discussão aqui travada ou se, por sua vez, o debate quanto à classificação fiscal do kit seria fundamento autônomo para a manutenção das autuações fiscais.
[1] Art. 9° Estão isentas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) todas as mercadorias produzidas na Zona Franca de Manaus, quer se destinem ao seu consumo interno, quer à comercialização em qualquer ponto do Território Nacional.
[2] Art 6º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados os produtos elaborados com matérias-primas agrícolas e extrativas vegetais de produção regional, exclusive as de origem pecuária, por estabelecimentos localizados na área definida pelo § 4º do art. 1º do Decreto-lei nº 291, de 28 de fevereiro de 1967.
§ 1º Os produtos a que se refere o "caput" deste artigo gerarão crédito do Imposto sobre Produtos Industrializados, calculado como se devido fosse, sempre que empregados como matérias-primas, produtos intermediários ou materiais de embalagem, na industrialização, em qualquer ponto do território nacional, de produtos efetivamente sujeitos ao pagamento do referido imposto.
[3] Julgado em sessão ocorrida em 25 de abril de 2019 e cujo acórdão ainda encontra-se pendente de publicação. Por unanimidade de votos, fixou-se a seguinte tese: "há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, § 2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT".
[4] https://www.conjur.com.br/2019-mai-15/direto-carf-exclusao-icms-base-calculo-pis-cofins
[5] Essa questão foi bem debatida no Carf e, atualmente, apresenta uma posição contrária às pretensões do contribuinte, ao fundamento que (i) as ações coletivas (mandados de segurança) redundariam em decisões judiciais com eficácia circunscrita ao território da autoridade coatora indicada no mandamus (vide acórdãos Carf n. 3402-003.067, 3402-004.828 e 3401-005.942) e, ainda, que as decisões proferidas (em ações individuais ou coletivas) não tratariam da questão da classificação fiscal, o que seria fundamento autônomo para a manutenção da pretensão fiscal (v.g., acórdão Carf n. 3301-005.546).
[6] Em regra, tal questão aborda se produtos adquiridos na Amazônia Legal também estariam abrangidos na área da Amazônia Ocidental. É o que se observa da discussão travada no acórdão Carf n. 3201-005.423; 3401-005.942.
[7] O contribuinte tem saído vencido nesta discussão, apesar de angariar votos favoráveis a sua pretensão. Nesse sentido. Acórdão Carf n. 3402-004.828.
[8] Tratando do tema: Acórdão Carf n. 3401-005.942.
[9] Vide acórdão Carf n. 3402-006.589.
Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista, ex-conselheiro do Carf na 3ª Seção de Julgamento e professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf (vice-presidente da 2ª Turma, 4ª Câmara da 3º Seção - Carf). Árbitra do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Doutoranda, bacharel e mestre pela Faculdade de Direito da USP e no Institut d'Études Politiques de Paris (SciencesPo). Especialista em Direito Tributário pelo Ibet. Professora de Direito Tributário e Aduaneiro.