Consultor Jurídico 01.07.2019
As autoridades fazendárias do estado de São Paulo costumam adotar posições bastante controversas no que se refere à cobrança do ITCMD. Um exemplo disso é o posicionamento adotado nas transmissões, por doação ou herança, de ações ou quotas de empresas com patrimônio líquido negativo. Empresas com patrimônio líquido negativo são aquelas cujos passivos excedem os ativos, de modo que seu valor patrimonial é inferior a zero.
Para entender o cerne da questão, é importante analisar o que prevê a lei do ITCMD do estado de São Paulo quanto à base de cálculo do imposto.
O artigo 9º da Lei estadual 10.705, de 28 de dezembro de 2000 (Lei 10.705/00), estabelece que a base de cálculo do ITCMD é o valor venal do bem ou direito transmitido, assim entendido o seu valor de mercado na data da abertura da sucessão ou da doação.
Tendo em vista que a determinação do valor de mercado de ações ou quotas de sociedades é bastante difícil quando tais títulos não são negociados em bolsa e não tenham sido objeto de qualquer transação recente, a Lei 10.705/00 traz um critério específico a ser utilizado nesses casos:
“Artigo 14 (...)
§ 3º - Nos casos em que a ação, quota, participação ou qualquer título representativo do capital social não for objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, admitir-se-á o respectivo valor patrimonial. (Redação dada ao parágrafo pela Lei 10.992, de 21-12-2001; DOE 22-12-2001; Efeitos a partir de 01-01-2002) (grifo nosso)”.
O diploma legal é claríssimo ao colocar como base de cálculo para incidência do ITCMD o valor patrimonial das participações societárias doadas ou herdadas, quando as respectivas ações ou quotas não forem objeto de negociação ou não tiverem sido negociadas nos últimos 180 dias.
O valor patrimonial de uma empresa nada mais é que o valor constante do balanço patrimonial da referida sociedade, na conta do patrimônio líquido. Como vimos, quando uma sociedade tem patrimônio líquido negativo, seu valor patrimonial é inferior a R$ 0. À luz da Lei 10.705/00, a base de cálculo do ITCMD nesses casos é negativa. Portanto, não haveria qualquer imposto devido na transmissão, por doação ou herança, de ações ou quotas de empresa com patrimônio líquido negativo.
Esse entendimento, porém, não vem sendo seguido pelas autoridades fiscais do estado de São Paulo. A Portaria CAT 29/11 (um normativo editado pela Secretaria da Fazenda para esclarecer e revisar os procedimentos a serem adotados para o recolhimento do ITCMD no estado de São Paulo) estabelece que “quando o patrimônio líquido indicar valor negativo, será considerado, para fins de base de cálculo do imposto, o valor nominal das ações, cotas, participações ou quaisquer títulos representativos de capital social” (grifo nosso).
Em outras palavras, a orientação dada pelas autoridades fiscais é que, no caso de sociedades com patrimônio líquido negativo, seja utilizado o valor do capital social de determinada sociedade em vez do patrimônio líquido. Em função do princípio societário da intangibilidade do capital social, essa conta sempre deverá ter saldo positivo.
Nesse passo, é importante ter em conta que o capital social representa, em tese, o valor histórico aportado pelos sócios na sociedade, muitas vezes mais de décadas atrás. Nada assegura, portanto, que esse valor tenha qualquer relação com a situação atual da empresa. A rigor, o próprio fato de o patrimônio líquido ser negativo significa que a empresa teve prejuízos maiores que o valor aportado pelos sócios — forte indício de que os aportes passados não resultaram na criação de valor esperada.
Note-se, porém, que a lei do ITCMD do estado de São Paulo não dispõe em qualquer artigo sobre o uso do capital social como base de cálculo. A Portaria CAT 29/11 adota um critério não previsto em lei para a cobrança do ITCMD, onerando indevidamente o contribuinte.
Alguns cartórios de notas no estado de São Paulo já se recusam a proceder com a lavratura de escrituras se o contribuinte não pagar o ITCMD na transmissão de ações ou quotas de sociedade com patrimônio líquido negativo, sob o argumento de que o imposto é devido nos termos da Portaria CAT 29/11.
Com o devido respeito às autoridades fiscais, entendemos que a Portaria CAT 29/11 afronta o princípio tributário da legalidade. Não poderia uma mera portaria alterar os critérios de determinação da base de cálculo do imposto em total arrepio à legislação fiscal.
Ao ser levado aos tribunais, porém, o assunto assumiu feições ligeiramente distintas, focando nem tanto o critério específico previsto na Portaria CAT 29/11, mas na suposta discricionariedade das autoridades fazendárias para determinar o valor de mercado da sociedade.
A Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) examinou o tema no Processo 4014419-7/2012, que tratava justamente do pagamento do ITCMD em um caso de doação com reserva de usufruto de ações de uma sociedade com patrimônio líquido negativo no momento da doação. Naquela ocasião, as autoridades fiscais exigiam o pagamento do ITCMD utilizando o critério trazido pela Portaria CAT 29/11. A discussão, todavia, centrou-se na possibilidade de aplicar a referida portaria a fatos geradores ocorridos antes de sua publicação (procedimento que havia sido seguido pelo Fisco e que foi condenado pelo tribunal), e não na ilegalidade da norma.
Apesar disso, o relator do processo deixou consignado que, a seu ver, no caso de sociedade com patrimônio líquido negativo em função de dívidas registradas em seu balanço, não seria possível aceitar o valor de patrimônio líquido negativo como base de cálculo do ITCMD. Primeiro, porque a legislação do ITCMD proibiria o abatimento de quaisquer dívidas que onerem o bem transmitido da base de cálculo do ITCMD. Segundo, porque o uso do valor patrimonial da sociedade para fins de cálculo do ITCMD, embora possível, não seria obrigatório, admitindo-se a revisão desse valor pela autoridade competente para chegar a um valor mais próximo do valor de mercado.
Ao examinar o tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo posicionou-se contra a aplicação automática do valor patrimonial da empresa como base de cálculo do ITCMD, não obstante as disposições do artigo 14, parágrafo 3º da Lei 10.705/00.
O TJ-SP entendeu que: (i) o artigo 9º da Lei 10.705/00 estabelece que a base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado do bem ou direito; (ii) o fato de o valor patrimonial da empresa poder ser utilizado como base de cálculo do ITCMD não significa que ele deva ser utilizado; (iii) a Fazenda pode discordar do valor declarado pelo contribuinte, podendo adotar outros meios para identificar o “real” valor das ações ou quotas por outros meios. Confira, nesse sentido, o acórdão relativo à Apelação 0000532-92.2012.8.26.0053:
“ANULATÓRIA DE DÉBITO. ITCMD. Doação de quotas sociais. Cálculo com base no balanço patrimonial da pessoa jurídica que, à época, apresentou valor negativo. Dados extraídos da declaração anual de ajustes (pessoa física), procedido o lançamento de ofício. Possibilidade. CTN, art. 199. Contribuintes que não se incumbiram de proceder à avaliação administrativa nem judicial a corroborar o resultado negativo do balanço, já que este não corresponde à ausência de valor das quotas, tanto que perante à Receita Federal declararam o valor histórico. Ônus de que não se desencumbiram (art. 333, I, CPC). Sentença de improcedência. Recursos parcialmente providos para adequação do indexador da obrigação e da verba honorária”.
Ousamos discordar do entendimento expresso pelos referidos tribunais. Se a Lei 10.705/00 estabeleceu como base de cálculo do imposto o valor de patrimônio líquido da empresa, não pode o Fisco exigir que o contribuinte recolha o tributo com base em parâmetro diverso, à sua conveniência, apoiando-se em uma interpretação distorcida de outros dispositivos legais mais genéricos, ou em atos normativos sem força de lei.
A Lei 10.705/00 trouxe regra específica justamente para dar certeza e segurança jurídica ao contribuinte, facilitando o recolhimento do imposto no caso de transmissão, por doação e herança, de ações ou quotas de empresas que não tenham sido objeto de negociação nos últimos 180 dias. A adoção de qualquer critério diferente, à escolha do Fisco, representa grave afronta ao princípio da legalidade e deve ser contestada.