Recente decisão da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf provoca debate no direito processual. Para o órgão, não serão consideradas ilícitas as provas derivadas de provas ilícitas quando ficar demonstrado que elas poderiam ser obtidas por fonte independente, bastando, para tanto, que se desse andamento aos trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação fiscal.
A tese do Carf parte de uma leitura simplista dos parágrafos 1º e 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal. O parágrafo 2º estabelece essa possibilidade de mitigação do uso da prova ilícita, desde que fique demonstrado que tais provas poderiam ser obtidas por meios independentes.
No caso, o STJ declarou escutas telefônicas ilícitas no âmbito judicial. Porém, no âmbito administrativo, o Carf disse que "todos os elementos de prova que instruem o processo notadamente poderiam ser obtidos independentemente dos mandados de busca e apreensão que levaram à decretação da nulidade". Segundo o voto vencedor, a conclusão natural e inevitável a que se chega é que as investigações já estavam em curso antes que o Poder Judiciário autorizasse as interceptações telefônicas:
"Razão a mais para que se reconheça que as provas obtidas no cumprimento dos MBAs [mandados de busca e apreensão] haveriam de ser alcançadas pela ação da Fiscalização Federal no curso dos procedimentos fiscais autorizados em lei, próprios, típicos e inerentes às atividades desenvolvidas pelo Órgão, uma vez que atos ilícitos já fossem de conhecimento do Fisco" (grifei o “haveriam de ser alcançadas”).
De pronto, não duvido que as provas haveriam de ser alcançadas pelo competente Fisco. Todavia, o que interessa discutir é que, vingando a tese, essa leitura da relativização da prova ilícita permite que o Estado escolha o modo proibido de busca da prova e, depois, alega que, se usasse os meios lícitos, chegaria no mesmo ponto.
Claro sofisma do julgado, podendo-se apontar os seguintes problemas: primeiro, usurparam consideravelmente as competências, uma vez que o órgão julgador passa por cima da decisão do STJ. Segundo, a própria aplicação das exceções da teoria dos frutos da árvore envenenada foram feitas de forma equivocada. Não é esse o sentido do parágrafo 2º do artigo 157 como também não é esse o sentido das “teorias” das fontes independentes e da descoberta inevitável — ambas incorporadas no direito brasileiro a partir da jurisprudência da Suprema Corte americana.
Explica-se, inicialmente, a questão do parágrafo 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal. Sendo esse aplicado a partir de uma leitura dita “literal” da regra jurídica, seria impossível a sua aplicação no caso concreto. A razão é simples, qual seja: o artigo fala que se considera fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. Trata-se, ressalta-se, de trâmites típicos da investigação ou instrução criminal. Criminal. O código não autoriza uma interpretação a partir da investigação fiscal. Então, por esse viés, é inaplicável o artigo no julgado em comento.
O tribunal, apesar de não ter fundamentado nesse sentido, pode contra argumentar a partir de uma interpretação principiológica do caso. Bem, se assim o for, levemos os princípios a sério. Analisemos o caso a partir do princípio da legalidade, que determina que a administração pública está, em toda a sua atividade funcional, sujeita aos mandamentos da lei. A administração, incluso o Fisco, apenas pode agir com base em norma jurídica. Se é assim, qual o fundamento da aplicação da exceção das fontes independentes no processo administrativo fiscal? O fundamento para a não utilização de provas ilícitas está previsto no artigo 5º, LVI, da Constituição Federal, sendo caracterizado como direito fundamental. O tribunal administrativo, então, mitiga direito fundamental sem base legal, é isso mesmo? Parece que é esse o caso.
Caso ainda se tenha dúvidas sob essas duas perspectivas a partir de uma leitura do ordenamento posto, lembro do artigo 112 do Código Tributário Nacional, que define: “A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos”. Há alguma dúvida da interpretação mais favorável ao acusado?
De outro giro, o debate pode se dar a partir da Teoria do Direito. Eventualmente, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais pode assinalar que “as teorias das fontes independentes e da descoberta inevitável” se originam da própria concepção do direito e seus princípios gerais. Contudo, caso se faça uma análise aprofundada das teorias, os fundamentos dos tribunais também não encontram êxito.
Uma breve digressão histórica pode auxiliar nesse sentido. Em 1914, a Suprema Corte americana julgou o Weeks v. United States, adotando a chamada exclusionary rule, que modificava a admissibilidade das provas no common law. Ou seja, até então, a admissibilidade da prova não era afetada pela ilegalidade dos meios pelos quais ela foi obtida. Tratava-se da clássica concepção “os fins justificam o meio”. Graças ao citado julgado e a uma corte constitucional guardiã de direitos fundamentais, incorporou-se a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, que só foi chamada assim 19 anos depois, no caso Nardone v. United States. Teoria essa que foi incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A jurisprudência norte-americana evolui para englobar exceções à teoria da fruit of the poisonous tree. Atualmente, há três grandes exceções, são elas: independente source (Silverthorne Lumber Co v. United States), attenuation exception (Nardone v. United States) e inevitable discovery (Wong Sun v. United States).
Apesar das exceções terem evoluído de maneira relativamente conexa, são aplicações distintas, o que é visivelmente confundido pela decisão do tribunal administrativo em tela. Nesse sentido, é importante deixar claro que em Wong Sun, a Suprema Corte estadunidense determinou que a teoria do fruto da árvore envenenada não teria aplicação quando o governo souber da evidência por fonte independente.
Aqui, não se trata de exercício de futurologia, mas de efetivo reconhecimento do fato. O comentário do Chief Justice Sobeloff em Sutton v. United States aponta bem o caso: "It is one thing to say that officers shall gain no advantage from violating the individual's rights: it is quite another to declare that such a violation shall put him beyond the law's reach even if his guilt can be proved by evidence that has been obtained lawfully[1]". Atenção para o fato que a afirmação versa sobre a evidência obtida. Não a evidência que poderá ser obtida. Em outras palavras, trata-se de prova concreta nos autos já realizada e não de previsões futurísticas (como a fundamentada pelo Carf).
Assim, o problema americano com a fonte independente está relacionado com evidências que são obtidas tanto por meio legal como por meio ilegal. Nesses casos, a jurisprudência aponta que a melhor solução é não utilizar a prova obtida, pois a confusão entre o meio legal e o meio ilegal corrompe aquele, sendo a prova declarada nula[2]. Destarte, ressalta-se que a fonte independente está relacionada com provas efetivamente obtidas e não com juízos de futurologia como a decisão aborda.
Sobre a teoria da descoberta inevitável, essa é baseada
numa demonstração de que “o governo indubitavelmente teria legalmente descoberto a evidência" contaminada "por meios lícitos". Com essa exceção, o acusador é autorizado a curar a ilegalidade original da evidência, desde que comprove que a descoberta da prova era inevitável.
Ainda, sobre essa exceção, é fundamental ressaltar que possivelmente se trata de equívoco sobre a fundamentação do caso Wong Sun, uma vez que a corte parece ter enfatizado ações positivas em oposição a probabilidades hipotéticas. Contudo, mesmo que esse não seja o caso, o conselho administrativo continua sem demonstrar a inevitabilidade da descoberta, não atingindo o standard mínimo para aplicação da teoria.
Voltando ao caso, a partir dessa breve perspectiva teórica da jurisprudência americana, percebe-se que a corte confundiu as duas teorias e não aplicou de maneira adequada nem um nem a outra, utilizando-se de forma arbitrária de aspectos ora de uma exceção e ora de outra para fundamentar a decisão.
Reforça-se, nenhuma das exceções dá azo a que se faça exercícios de futurologia. Fosse assim, por exemplo, o Estado poderia torturar um cidadão e depois essa prova ser usada, porque, independentemente da tortura, seria descoberto o crime. Sendo mais simples: em uma leitura rasa, do parágrafo segundo do art. 157 do Código de Processo Penal, “lava” a ilicitude constante no parágrafo primeiro.
Ainda, o acordão está insuficientemente fundamentado, uma vez que citar dispositivo de lei não pasta para atender à exigência do artigo 93, IX, da CF.
Interessante é que o acordão cita 43 vezes a palavra “teoria”. E fala várias vezes da teoria da fonte independente e da descoberta inevitável. Ora, se é teoria, então tem as complexidades (sucintamente) abordadas. Tem condições de possibilidade. Possui uma determinada epistemologia. Não é um prêt-à-porter. Nada foi aprofundado. Caberia ao Estado demonstrar que, mesmo sem a prova ilícita, seria descoberto ou provado(s) o(s) fato(s). De novo, não duvido disso. Ninguém duvida que o Fisco é eficiente. Só que, no caso, tudo indica que o Estado lançou mão de um atalho. Se era possível pela via legitima, por que optou pelo caminho mais fácil?
No caso, a decisão recai em um paradoxo. Metaforicamente: como é possível atravessar um abismo em que uma ponte é indispensável (mas não existe) e chegar do outro, só então voltando para construir essa mesma ponte? Como assim, se a ponte era condição?
De efetivo, a tese da descoberta inevitável foi utilizada de um modo inadequado. Ou de forma não bem fundamentada-explicada. É como se o craque do jogo de futebol pudesse fazer gol de mão, porque é inevitável que, em algum momento da partida, ele venha a fazer um gol com os pés.
A tese da fonte independente é muito difícil de ser demonstrada. A fonte deve ser totalmente independente. Se tiver cheiro da ilícita, já estará contaminada. Já não será independente. Frise-se que, na jurisprudência pátria, há vários casos em que o precedente utilizado não se encaixa. Ora, é a especificidade do caso que fará exsurgir a circunstância de que a prova ilícita não venha a contaminar o feito. E não se fale em razoabilidade ou sopesamento, colocando de um lado o interesse público e, de outro, o interesse privado. Isso é falso e nunca foi afirmado no terreno do que se vem chamando de ponderação, proporcionalidade etc. Ou há um direito ou não há. Os fins não justificam os meios.
Não basta repetir o dispositivo legal. Ele não é autoexplicativo. Tem de demonstrar que a ilicitude descoberta não é condição de possibilidade. A probabilidade de se descobrir pelos meios legais não pode ser um argumento abstrato, até porque todo e qualquer crime poderá ser descoberto, em algum momento. Afirmar que a prova poderia ser descoberta de forma independente é fazer um enunciado que não passa pelo critério da CHS (Condição Hermenêutica de Sentido, que desenvolvo no Dicionário de Hermenêutica). Dizer que sim ou que não é uma questão empírica. Esse é o busílis.
No caso, o voto da conselheira Tatiana Migyama captou bem a controvérsia, aludindo, ademais, ao fato de que não há/houve ação autônoma por parte do Fisco. Tirando os elementos declarados inválidos pelo STJ, caberia ao Estado comprovar, amiúde, a tese da fonte independente. Porém, como provar algo que não feito? É o mesmo caso da hipótese da escuta ilícita. A polícia descobre o autor mediante prova ilícita. A partir dessa descoberta abre a investigação pelas vias normais. E chega ao autor. Ou seja, constrói a ponte pela qual já havia passado.
Por último, o que importa mesmo nem é esse caso concreto. É difícil, examinando o acordão, descobrir se a descoberta dos elementos de prova – que é uma questão empírica — eram (im)possíveis de acontecer de forma independente e que a descoberta era inevitável. Nesse caso, havendo controvérsia e muita dúvida, caberia o não uso do parágrafo 2º do artigo 157, uma que o processo penal não admite dúvida para condenar; a dúvida é sempre a favor do réu. Bom, no caso, não era processo penal. Mas foi utilizado o CPP. Eis a questão.
De qualquer modo — e é isso que queria dizer — o mais importante é discutir os limites do uso da tese da fonte independente ou descoberta inevitável. De há muito isso me intriga. Já vi aplicada a tese em casos de invasão de domicílio. Tem droga na casa; entra-se sem mandado. E lá dentro tem...droga. Pronto. Tivesse a polícia se utilizado da via “normal”, também teria chegado à mesma prova. Mas, convenhamos, isso é tão simples assim?
Fosse tão simples a leitura do parágrafo 2º do artigo 157, do CPP, estar-se-ia a legitimar, legalmente, o atalho em qualquer investigação, pela simples razão de que sempre será possível “lavar” a ilicitude originária. Lavagem de prova. Eis o ponto.
Esta é a questão que deve ser discutida e (re)trabalhada pela dogmática processual penal. E a dogmática administrativista. O exemplo do caso julgado pelo Carf pode não ser simpático aos olhos de um leigo, porque poderá dizer que “não importa esse formalismo todo”. “Já não há diretos demais?”, perguntará outro.
O que não devemos esquecer é que essa tese da fonte independente tem o seu lócus privilegiado no processo penal. Ali não estão em jogo grossos caraminguás do fisco, como no Carf, mas, sim, liberdades fundamentais. É o que se chama de garantias processuais.
É o que penso a respeito do assunto, a partir de meu zelo epistêmico.
[1] Uma coisa é dizer que os oficiais não obterão nenhuma vantagem de violar os direitos do indivíduo: é outra bem diferente declarar que tal violação o colocará além do alcance da lei, mesmo que sua culpa seja provada por evidência obtida legalmente.
[2] Nesse sentido, análise do artigo: BAIN, Jeffrey M., KELLY, Michael K. Fruit of the poisonous tree: recent developments as viewed through its exceptions, 31, U. Miami L. Rev. 615 (1977). Para jurisprudência em sentido diverso, ver: United States v. Langley, 466 F.2d. 27 (6th Cir. 1972).