O modelo adotado pelo Carf é mais "fechado". A presidência é sempre ocupada por um auditor fiscal e o presidente pode votar até duas vezes o mesmo caso: uma de forma ordinária, junto com os demais conselheiros, e a outra no desempate. Ou seja, ele pode empatar o julgamento e depois desempatar - o que não é bem visto pelos contribuintes.
Além de motivar uma série de ações judiciais, o voto de qualidade do Carf é alvo do Projeto de Lei nº 6.064, que tramita na Câmara dos Deputados. O texto prevê extingui-lo. No formato pretendido, havendo empate de votos, a Fazenda sairia derrotada. A medida tem base no artigo 112 do Código Tributário Nacional (CTN), que prevê interpretação mais favorável ao contribuinte em caso de dúvida.
Esse projeto de lei ganhou regime de urgência há duas semanas como consequência de um acordo para excluir, em votação simbólica, emenda que limitava a atuação dos auditores fiscais a casos de crimes tributários e foi incluída na medida provisória (MP) da reestruturação dos ministérios. Com a urgência, o texto poderá ser votado diretamente no Plenário.
O líder do PP na Câmara, deputado Arthur Lira (AL), está elaborando o texto e negocia com os outros partidos a inclusão, nesse projeto, de regras para a atuação dos auditores e proibir extrapolações. Ele usa como exemplo a portaria da Receita Federal do fim do ano passado que determina a divulgação em seu site das representações fiscais compartilhadas com o Ministério Público Federal para fins penais.
"Qual lei autorizou? Isso é extrapolar as funções da Receita, é quebrar o sigilo fiscal", acusa o líder do PP. O projeto não vai retroagir para investigações já realizadas.
O trecho da proposta que trata sobre o voto de qualidade deve permanecer no seu formato original. Os deputados já haviam aprovado, há dois anos, o fim dessa prática. Na época, eles utilizaram uma emenda em medida provisória sobre parcelamento especial (Refis), mas os senadores rejeitaram a alteração alegando que se tratava de um "jabuti" - texto que não tinha relação com o conteúdo original.
A possibilidade de, agora, esse tema avançar no Congresso vem causando alvoroço entre advogados que atuam para os contribuintes e que defendem o fim do voto de qualidade. A presidente do Carf, Adriana Gomes Rêgo, acredita, no entanto, que o incômodo gerado pela prática se deva ao uso em casos de valor elevado.
Isso porque, segundo dados divulgados pelo Carf, uma pequena fatia das discussões é resolvida dessa forma. Apenas 7% das 45.479 decisões do órgão proferidas entre 2017 e 2019 tiveram o voto de minerva do presidente. Foram 5% a favor da Fazenda e 2% do contribuinte.
O Carf não entrou em contato com os deputados para tentar barrar o projeto, segundo a presidente. Isso teria que ser feito por meio da assessoria parlamentar do Ministério da Economia. Ela chama a atenção, no entanto, que se aprovada e sancionada a lei, as consequências seriam custosas tanto para a União como para os contribuintes.
A administração pública oferece um contencioso totalmente gratuito por meio do Carf, frisa Adriana, e hoje a Fazenda não pode recorrer ao Judiciário quando perde. Isso mudaria com a aprovação da lei. Ela acredita que tanto os casos resolvidos pelo voto de qualidade, como os definidos por maioria ou mesmo unanimidade contra a Fazenda poderiam ser levados à Justiça. Geraria mais gastos a ambas as partes e levaria mais tempo para o fim das discussões.
"Os pontos de vista do interesse público e da sociedade eu acho que não estão sendo observados", afirma Adriana sobre o projeto de lei. Ela defende que seja mantido o modelo atual. "Estamos em um tribunal administrativo. É uma decisão que representa a administração tributária. No caso de empate, o voto do que representa a administração tributária deve desempatar."
Especialista na área tributária, Leandro Cabral, sócio do Velloza Advogados e autor da pesquisa sobre o voto de qualidade nos tribunais dos Estados, acredita que possa haver uma terceira via para essa discussão. "Eu critico o voto de qualidade praticado pelo Carf, principalmente por ser voto duplo, mas não acho que deva ser extinto", pondera. "Se trata de uma definição que precisa ser alterada em prol da paridade. Em vez de duplo, mudar para voto único, como ocorre na maioria dos Estados."
Somente Pará, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte seguem modelo semelhante ao que é utilizado no Carf. Amazonas, Bahia, Minas Gerais e São Paulo têm também voto duplo, mas nesses Estados ou a presidência é alternada com representante dos contribuintes ou o substituto do presidente fazendário é representante dos contribuintes.
A maioria dos Estados, porém - 17 ao todo e o Distrito Federal - adota o voto único. Desse total, Acre, Distrito Federal e Goiás têm a presidência alternada. Em algumas turmas, o presidente é da Fazenda, por exemplo, e em outras dos contribuintes. Já no Amapá, Espírito Santos e Mato Grosso do Sul, apesar de a presidência ser ocupada por um auditor fiscal, o substituto ou o vice é representante dos contribuintes.
O Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Rio Grande do Sul (Tarf) é o único que tem voto único e a presidência fica nas mãos de um profissional "isento". Ele é escolhido pelo Secretário da Fazenda e não deve representar nem o Fisco nem o contribuinte. Os demais 11 Estados - Alagoas, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins - se utilizam do voto único, mas com a presidência da Fazenda.
O levantamento feito pelo advogado mostra que apesar de haver diferentes modelos, a sistemática do voto de qualidade existe em todos os Estados. Para Leandro Cabral, extingui-lo seria um risco ao processo administrativo. "Eu prezo mais pela manutenção do Carf do que por uma alteração legislativa que fragilize esse sistema. O processo administrativo tributário deve ser preservado", afirma.
Para o advogado Tiago Conde, sócio do escritório Sacha Calmon Misabel Derzi Advogados, a possibilidade de acabar com o voto de qualidade equivaleria a pedir para acabar com o próprio Carf. "O voto de qualidade é importante para a Fazenda e nós temos um outro benefício, que é a possibilidade de, ao vencer, o processo não chegar ao Judiciário. Isso é mais importante que o voto de qualidade", observa.
Ele também acredita que possa haver alternativa ao modelo que se tem hoje. Por exemplo, manter da forma como está, mas com a possibilidade de o contribuinte que perde pelo voto do presidente discutir seu caso no Judiciário sem a necessidade de apresentar garantia à dívida.