Consultor Jurídico - 22.05.2019
As novas tecnologias não impactaram apenas o meio pelo qual bens intangíveis são disponibilizados, mas também permitiram o aprimoramento das operações com bens tangíveis: valendo-se da conectividade facilitada pela internet, bens físicos são vendidos a consumidores situados em diversas localidades, independentemente da presença física do vendedor em determinado estado.
Trata-se do fenômeno popularmente conhecido como e-commerce, que levanta diversas questões relacionadas aos desafios da tributação das operações realizadas em tal contexto, tanto no âmbito da legislação interna, quanto no plano internacional[1].
Embora a operação de "venda à distância" seja bastante conhecida (bastando lembrarmos das vendas não presenciais por telefone), o desafio apresentado pelo e-commerce reside na escala em que essas operações são realizadas[2].
Com efeito, no Brasil, em menos de 10 anos, o mercado de e-commerce experimentou sensível evolução: de R$ 18,7 bilhões em 2011 para R$ 53,2 bilhões em 2018[3], crescimento este verificado, inclusive, em períodos bastante conturbados sob o prisma econômico. E, em que pese o crescimento expressivo verificado no Brasil, o montante negociado no contexto do e-commerce ainda é tímido se comparado ao volume global, que atingiu a marca de US$ 2,43 trilhões em 2018, com crescimento de 18% em relação ao ano de 2017[4].
Diante de tal evolução do mercado, surgiram questionamentos quanto à adequação das regras tradicionais de tributação em razão do embate entre estados de destino e estados de origem em relação à competência para cobrança de tributos sobre as operações realizadas no e-commerce. Isso porque os locais de destino, que antes recebiam parcela dos tributos referentes às vendas dentro do seu território, passaram a experimentar perda de arrecadação para os locais de origem das mercadorias, em especial nos casos de venda direta à consumidor final.
Sobre o tema, importante analisar as proporções da disputa tributária entre local de destino e local de origem no âmbito internacional e nacional.
Na Europa, foi apresentada alternativa cujo objetivo seria assegurar a arrecadação local de destino, preservando-se, entretanto, a simplicidade das obrigações acessórias a serem cumpridas pelo contribuinte. Em resumo, tratar-se-ia de sistemática em que o remetente recolhe o imposto para seu próprio país, por meio de um sistema centralizado conhecido como one stop shop, sem prejuízo quanto à observância das regras locais da obrigação acessória (invoice)[5] relativa à sua operação.
Em que pese o ineditismo do sistema, tal sistemática somente seria autorizada para empresas de e-commerce que negociem volume inferior a 100 mil euros anualmente. Caso tal limite seja superado, seria necessária a obtenção de registro de contribuinte no país de destino, devendo-se observar as regras de compliance estipuladas pelo referido país, situação que tenderia a aumentar seu custo de conformidade. Percebe-se, portanto, que a União Europeia se preocupou em ajustar seu modelo apenas para atender empresas de pequeno porte e startups.
No caso dos Estados Unidos, por outro lado, a tributação do e-commerce tem seu foco direcionado ao sales tax, espécie tributária estadual que tem sofrido com a queda de arrecadação nos estados de destino, em razão da ausência de presença física do vendedor (nexus), requisito criado pela Suprema Corte americana, no julgamento do leading case Quill Corp. vs. North Dakota State (1992).
Naquela oportunidade, a Suprema Corte definiu que as empresas de e-commerce, no caso de uma venda não presencial, estariam isentas do sales tax no estado do consumidor, exceto se lá tivessem presença física. No referido julgamento, a corte destacou que caberia ao Congresso americano regulamentar o que seria a presença física, observando-se, assim, a cláusula comercial prevista na Constituição dos Estados Unidos[6].
Considerando que nada havia sido efetivamente editado pelo Congresso sobre o tema, os estados iniciaram um movimento para criar o "nexo de causalidade" entre venda online e consumidor, de forma a validar a cobrança do sales tax. De acordo com Joyce Beebe, a decisão neutra da Suprema Corte e a ausência de regulamentação e fixação dos conceitos atinentes a presença física teria promovido um ambiente extremamente vantajoso aos players do e-commerce, os quais se utilizaram do referido leading case para se defender da tributação sobre vendas on-line[7].
Diante de tal cenário, o tema foi novamente judicializado e sofreu uma reviravolta em 2018 na Suprema Corte, oportunidade em que foi autorizado ao estado da Dakota do Sul, enquanto "local de destino", exigir o imposto quando a empresa remetente realizasse mais de 200 transações ou negociasse mais de US$ 100 mil no ano no estado.
No Brasil, por sua vez, a problemática é bastante parecida à que vimos no mundo e acabou resultando numa solução similar àquela adotada na UE, mas com limites e disputas bem diferentes.
Até 2015, a Constituição Federal determinava que o ICMS incidente sobre as vendas a consumidor final não contribuinte do imposto seria devido exclusivamente ao estado de origem da mercadoria. Portanto, embora os consumidores do e-commerce estivessem localizados no estado de destino, o ICMS abastecia exclusivamente os cofres do estado de origem. Logo, diante do crescimento do e-commerce, houve perda significativa da arrecadação do imposto pelos estados de destino, principalmente considerando que quase a totalidade das operações realizadas em tal contexto tem como destinatários consumidores finais não contribuintes do ICMS.
Além disso, especificamente em relação ao cenário brasileiro, a estrutura adotada nas operações com comércio eletrônico contribuiu para o agravamento da celeuma, tendo em vista a alta concentração das empresas de e-commerce nas regiões Sul e Sudeste — muitas vezes estimuladas pela concessão de benefícios fiscais de constitucionalidade duvidosa —, enquanto que parcela relevante do mercado consumidor estava localizada em outras regiões do país.
Nesse contexto, a queda da arrecadação do ICMS pelos estados de destino não ocorria apenas pelo fato de não receberem qualquer parcela do imposto, mas também em razão da diminuição do número de operações internas como resultado do crescimento do comércio eletrônico.
Na tentativa de reverter tal cenário, os estados afetados pela perda da arrecadação, especialmente aqueles localizados nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e o Espírito Santo, editaram o Protocolo ICMS 21/2011, oportunidade em que acordavam repartir o ICMS entre origem e destino nas operações interestaduais em que o consumidor final adquirisse mercadoria ou bem de forma não presencial por meio de internet, telemarketing ou showroom.
Naturalmente a inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2014[8]. No entanto, a despeito da declaração de inconstitucionalidade, o objetivo dos estados de destino foi alcançado: em 2015, foi publicada a Emenda Constitucional 87, estabelecendo que, independentemente de o destinatário de bens nas operações interestaduais ser contribuinte ou não do imposto, ao estado de destino caberá o ICMS correspondente à diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual[9].
Em que pese a justificativa bastante coerente para alteração do texto constitucional — divisão das receitas entre os estados em função de um novo modelo de negócio não previsto em 1988 — a forma como foi implementada essa mudança gerou impactos sobre as operações realizadas no contexto do comércio eletrônico pelas microempresas e as empresas de pequeno porte (MPEs) optantes pelo Simples Nacional, as quais foram expressamente incluídas na nova sistemática de recolhimento por força da cláusula 9ª do Convênio ICMS 93/2015.
Isso porque, conforme destacado, haverá a necessidade de pagamento do diferencial de alíquota, independentemente de o destinatário de bens nas operações interestaduais ser contribuinte ou não do imposto, alterando-se apenas o responsável pelo recolhimento do imposto. E, de acordo com a sistemática da EC 87/2015, caso o destinatário não seja contribuinte do imposto, cabe ao remetente o recolhimento do ICMS.
Esse é justamente o contexto do e-commerce: a maioria — senão a totalidade — das operações tem como destinatários não contribuintes do imposto, de modo que o remetente deverá cumprir para com as obrigações acessórias referentes ao recolhimento do ICMS não só em relação ao estado em que está localizado, mas também em relação ao estado de destino.
Logo, competiria às MPEs a adoção de todos os procedimentos para pagamento do imposto, o que, em se tratando de ICMS, é tarefa extremamente árdua, principalmente levando em consideração a ausência de uniformidade e a complexidade da legislação do imposto entre os estados, o que demandaria, portanto, o conhecimento acerca da legislação das 27 unidades federadas para evitar riscos de autuações, multas e, principalmente, apreensão das mercadorias nas barreiras entre estados. Nesse cenário, as MPEs incorreriam em grandes custos com compliance, o que, inegavelmente, afetaria drasticamente o lucro auferido nas operações, prejudicando a competitividade de tais empresas em relação aos grandes players do mercado.
De fato, não se discute que grandes empresas possuem mais recursos, estrutura e respaldo técnico para arcar com os ônus referentes ao cumprimento de obrigações acessórias. Em contrapartida, tratando-se de MPEs, exigir o cumprimento de diversas obrigações acessórias (por exemplo, cadastramento em todos os estados destinatários de suas mercadorias, emissão de notas fiscais de padrões distintos, conhecimento acerca da legislação etc.) pode não apenas trazer dificuldades operacionais que afetem sua competitividade, mas, eventualmente, impedir que continuem atuando no mercado de maneira economicamente vantajosa.
Sob tal perspectiva, a nova sistemática de apuração do ICMS seria contrária à função econômica desempenhada pelas MPEs. De acordo com estudo publicado pelo Sebrae[10], somente no estado de São Paulo os pequenos negócios: (i) participam de 98% da economia do estado; e (ii) são responsáveis por 50% dos empregos.
Diante do contexto descrito acima, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.464[11], oportunidade em que foi concedida medida cautelar para suspender a eficácia da cláusula 9ª do Convênio ICMS 93/2015[12][13].
Uma vez verificados os principais exemplos do cenário internacional e a experiência nacional sobre o tema, não há dúvidas de que há grandes questionamentos relacionados às operações realizadas no contexto do e-commerce, notadamente a necessidade de repensar a sistemática de tributação com vistas à manutenção do equilíbrio fiscal daquelas jurisdições afetadas pela perda de arrecadação em razão do impacto da evolução tecnológica na alteração dos modelos de negócio.
Por outro lado, além de repensar a sistemática de tributação, também não se pode ignorar que as próprias tecnologias podem auxiliar no desenvolvimento de novas mecanismos para a facilitar a arrecadação e partilha, de modo (i) a reduzir o ônus do contribuinte relacionado a deveres de compliance e (ii) garantir eficiência no recolhimento de tributos.
[1] Recomenda-se a leitura dos reports da OCDE acerca dos desafios tributários da economia digital, disponíveis nos seguintes links: http://www.oecd.org/ctp/addressing-the-tax-challenges-of-the-digital-economy-action-1-2015-final-report-9789264241046-en.htm e https://www.oecd.org/tax/beps/brief-on-the-tax-challenges-arising-fromdigitalisation-interim-report-2018.pdf.
[2] Rifat Azam , no artigo “The Political Feasibility of a Global E-Commerce Tax”, afirma que, até 2020, o comércio eletrônico ultrapassará a ordem de 1 trilhão de dólares em transações.
[3] 39ª Webshoppers, p.23 – Relatório sobre o e-commerce brasileiro – publicado por EBIT em 2019. https://www.ebit.com.br/webshoppers. Acessado em 14/4/2019.
[4] Dados obtidos em https://www.digitalcommerce360.com/article/global-ecommerce-sales, acessado em 14/4/2019.
[5] Modernising VAT for cross-border e-commerce. https://ec.europa.eu/taxation_customs/business/vat/digital-single-market-modernising-vat-cross-border-ecommerce_en#heading_1. Acessado em 14/4/2019.
[6] BERENGIAN, Anderee. Why The Supreme Court's Internet Sales Tax Decision Will Hurt e-Commerce Startups. In: Forbes, 14 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/forbestechcouncil/2018/12/14/why-the-supremecourts-internet-sales-tax-decision-will-hurt-e-commerce-startups/#1a668d6268b2.
[7] Segundo o artigo “E-Commerce: Recent Developments in State Taxation of Online Sales”, somente incidiria sales tax se houver presença física do vendedor no Estado que pretende cobrá-lo (tax nexus). Diversos Estados americanos têm criado interpretações ampliativas acerca do nexus, desenvolvendo, no mínimo, três espécies click through nexus, economic nexus, and affiliate nexus, que já foram objeto de discussão judicial nos tribunais americanos, por demanda ajuizadas pelos players do e-commerce.
[8] ADIs 4.628 e 4.713.
[9] Além disso, a Emenda Constitucional também estabeleceu a proporção em que a diferença entre a alíquota interna e a interestadual seria partilhada entre Estados de origem e de destino, sendo que, a partir do presente ano, 100% do ICMS incidente sobre tais operações caberá ao Estado de destino.
[10] O estudo completo pode ser acessado em http://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/SP/Pesquisas/Panorama_dos_Pequenos_Negocios_2018_AF.pdf.
[11] Atualmente, aguarda-se julgamento definitivo da ADI.
[12] Para concessão da medida liminar, em síntese, foi reconhecido que a aludida Cláusula: (i) extrapola a regra de incidência única estabelecida na Lei Complementar 123/2006; (ii) nos termos do artigo 146, III, "d", da Constituição Federal, compete à Lei Complementar definir tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte; (iii) não confere condições justas e igualitárias de competição para essas empresas.
[13] Em que pese a concessão da medida cautelar, trata-se de decisão precária, a qual poderá ser revista pelo Plenário quando do julgamento da ADI.
Eduardo de Paiva Gomes é sócio do Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Felipe Wagner de Lima Dias é advogado, mestrando e pós-graduado pela Faculdade de Direito da FGV-SP, membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição e ex-coordenador do Grupo de Direito Tributário da Câmara-e.net.
Phelipe Moreira Souza Frota é advogado, mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição.