Isto porque tem sido cada vez mais comuns situações em que não há qualquer abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, ou ainda na esteira da jurisprudência dominante, a participação direta e conjunta dos administradores como responsáveis na realização do fato gerador, mas mesmo assim insiste a Receita em buscar meios de incluir no polo passivo o administrador.
Ora, as responsabilidades dos administradores de uma sociedade por ações, em regra, originam-se dos deveres e das atribuições a que eles estão sujeitos, que, em resumo, contemplam diferentes condutas: (i) dever de diligência (artigo 153 LSA[1]); (ii) dever de lealdade (artigo 155 LSA); (iii) dever de informar (artigo 157 LSA); e (iv) respeito aos interesses e finalidades da sociedade (artigo 154 LSA).
O “administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrai em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão (…)” (artigo 158 LSA), observadas as exceções de infração a lei ou ao estatuto social.
Já o CTN[2] estabeleceu a possibilidade de responsabilização dos administradores, determinando que eles são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (artigo 135, inciso III, CTN). Além disso, o artigo 124, inciso II, determina que são solidariamente responsáveis as pessoas expressamente designadas por lei.
Assim, compreende-se que a regra geral no Direito Tributário é de que os administradores de uma sociedade por ações não respondem pessoalmente pelos tributos devidos por aquela, salvo se tais obrigações tributárias forem decorrentes de atos dolosamente praticados com excesso de poder ou infração de lei vigente ou ao estatuto social.
O inciso III do artigo 135 do CTN trata da responsabilidade dos administradores das pessoas jurídicas. No passado havia dúvida acerca da natureza da obrigação e consequentemente se a disposição contida no artigo 135, inciso III, da LSA, ensejaria responsabilidade objetiva e o dever legal do administrador de realizar o pagamento dos tributos devidos pela sociedade, sendo certo que, no caso de não pagamento de tais tributos, seria caracterizada ilicitude por parte do administrador. Neste cenário, ele responderia perante as autoridades fiscais, independentemente de ter praticado qualquer ato ilícito, pelo inadimplemento da obrigação tributária da sociedade.
No entanto, este entendimento restou superado, ficando evidente que a mera inadimplência da obrigação tributária não seria suficiente para configurar a responsabilidade do administrador. Em linha com a jurisprudência que prevaleceu nos últimos anos no Superior Tribunal de Justiça, terminou esse tribunal baixando a Súmula 430, que assim dispõe: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”. Exceção à regra ocorreria quando o administrador, através de procedimentos ilícitos, visa a encobrir a própria obrigação tributária (v.g., falta de escrituração regular) ou a diminuir as garantias do crédito tributário (v.g., dissolução irregular da sociedade).
Ao longo dos anos, a Receita utilizava-se da oportunidade da emissão da Certidão de Dívida Ativa, título executivo judicial detentor de liquidez e certeza do crédito tributário, para incluir os administradores juntamente com a sociedade, de forma que a execução fiscal fosse proposta também contra estes, se necessário, ou ainda fosse redirecionada caso a sociedade não pudesse responder diretamente, tendo em vista a constatação de dissolução irregular no curso da execução.
Este cenário acabou sofrendo alterações, com o advento da Súmula 392, também do STJ, que restringiu a substituição da CDA para modificação do sujeito passivo[3], sob o argumento de que o título judicial deve refletir o lançamento tributário e o direito à ampla defesa administrativa.
Diante disto, passou a Receita a se socorrer de novo expediente mediante a inclusão dos administradores diretamente nas autuações fiscais. Ou seja, por meio desta nova prática, passaram os administradores a serem indicados juntamente com a sociedade em autos de infração e notificações de lançamento que visem o pagamento de determinado crédito tributário.
Igualmente relevante na discussão sobre a responsabilidade dos administradores em matéria tributária vem a ser o disposto no artigo 124, inciso I, do CTN.
Isto porque, sob o argumento de que o administrador possui interesse comum com a pessoa jurídica, a Receita tem-se utilizado deste dispositivo para de forma exagerada indicar como responsáveis solidários diversas pessoas físicas e jurídicas ligadas ao contribuinte autuado e, dentre eles, o administrador da pessoa jurídica. Trata-se de prática equivocada e tendenciosa, já que a Receita não poderia utilizar o referido artigo para a responsabilidade dos administradores, vez que já há dispositivo legal (artigo 135, III, do CTN) para isso e interesse comum (termo impreciso e abstrato) não pode ser confundido com interesse econômico.
O primeiro envolve a participação de “maneira ativa, individual e unida” com a fiscalizada, “assumindo reciprocamente direitos e obrigações que circunscreveram os fatos jurídicos que dão essência à obrigação tributária”[4], enquanto o segundo meramente interesse “finalístico e consequencial, que os titulares naturalmente têm na exploração dos negócios mercantis pela pessoa jurídica”[5].
Para correta caracterização da solidariedade pelo administrador, seja pela aplicação do artigo 135, III, do CTN, seja pela aplicação do artigo 124, I, do CTN, recai o ônus da prova sobre a fiscalização, cuja função é demonstrar de forma efetiva a participação do sujeito passivo solidário no fato gerador, inclusive, conforme já entendeu o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)[6].
Como consequência e desdobramento da inclusão dos administradores no polo passivo dos autos de infração, a Receita tem realizado o arrolamento de bens dos referidos responsáveis solidários, com base nos artigos 64 e 64-A Lei 9.532/1997 e da Instrução Normativa da RFB 1.565/2015, quando a soma dos créditos tributários administrados pela RFB, de responsabilidade do sujeito passivo, exceder, simultaneamente, a: (i) 30% (trinta por cento) do seu patrimônio conhecido; e (ii) R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais)[7].
Muito embora o arrolamento não seja um gravame igual à penhora, tendo em vista que o sujeito passivo pode alienar o bem arrolado desde que comunique a Receita[8], tal ato gera um enorme “transtorno” para o responsável solidário (no presente caso um administrador que tenha sido incluído no polo passivo).
Isto porque, caso não haja a comunicação da alienação, oneração ou transferência dos bens, ou se não forem cumpridas as formalidades exigidas na legislação acima citada, restará autorizado o requerimento de medida cautelar fiscal contra o sujeito passivo[9]. Além disso, o arrolamento de bens pode dificultar/prejudicar questões comerciais e pessoais dos responsáveis, vez que no momento de alienar algum bem ou de fazer prova de seu patrimônio, a outra parte de um eventual negócio pode deixar de realizá-lo por conta da indicação do arrolamento de bens.
Em suma, vê-se que o exercício das funções de administrador de sociedade comercial no Brasil é repleto de desafios, sobretudo diante das medidas exageradas que a Receita insiste em adotar. Espera-se que tanto na esfera administrativa como na judicial tais excessos sejam neutralizados.
[1] Lei das Sociedades Anônimas.
[2] Código Tributário Nacional.
[3] Súmula 392 – A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução.
[4] CSRF – AC 9101-003.889, j. de 7/11/2018.
[5] CARF – AC 1402-002-958, j. de 13/3/2018.
[6] CARF – AC 1402-002.958, j. de 13/3/2018.
[7] Art. 2º.
[8] Artigo 64, parágrafo 3º da Lei 9.532/97.
[9] Artigo 64, parágrafo 4º da Lei 9.532/97.
Por Carlos Frederico L. Bingemer e Josef Azulay Neto
Carlos Frederico L. Bingemer é sócio do Barbosa Müssnich e Aragão Advogados.
Josef Azulay Neto é associado do Barbosa Müssnich e Aragão Advogados.