Consultor Jurídico 07.02.2018
Daí ser um dos objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, ‘justa’ e solidária” (artigo 3º, I). O artigo 170, caput, dispõe que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da ‘justiça’ social”. Já o artigo 193 diz que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a ‘justiça’ sociais”.
Fica claro que a justiça não é uma fantasia do constitucionalismo brasileiro. Nem um ideal distante. Ela é um direito. Um direito constitucional.
Essa justiça se apresenta como justiça tributária pelo princípio da capacidade contributiva. Segundo o artigo 145, § 1º, da Constituição, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
É um ideal de forte base histórica. Em 1215, na Inglaterra do Rei João Sem Terra, pessoas do campo encurraladas pela força da Coroa que cobrava tributos escorchantes para custear caprichos elevaram suas vozes em busca de direitos que lhes garantissem o respeito necessário, por parte do Rei, a uma esfera mínima de bens vitais conferidos a esses cidadãos que eram, antes de tudo, contribuintes.
Séculos depois, nas Colônias da Virgínia, os pioneiros que faziam do Novo Mundo uma experiência sem precedentes imortalizaram o princípio: “Não há tributação sem representação popular” (no taxation without representation). Ali se gravou na pedra da história o vínculo inquebrantável entre as obrigações tributárias e a necessária legitimidade democrática para tal imposição.
E não é apenas no exterior que o palco dos acontecimentos se eleva. O Brasil, com a Derrama, ouviu gritos de quem não aceitava mais entregar boa parte de sua produção para uma Coroa repleta de privilégios e guiada pelo pendor por acariciar os grandes desprezando os pequenos. Daí a Inconfidência Mineira.
Hoje, na ressaca de uma crise que penalizou inocentes, os pequenos voltam à ribalta. Eles trazem em suas mãos a Constituição. São integrantes do Simples Nacional. Egressos da informalidade, movimentam a economia de um gigante de mais de 206 milhões de pessoas. No começo de suas trajetórias, são detidos pela polícia, vendo atiradas nas calçadas mercadorias e dignidades. Invisíveis, ilegais, aqueles a quem a justiça da vida parecia não enxergar, eles são os pequenos.
Em setembro de 2017, a Receita Federal notificou 556.128 empresas optantes pelo Simples Nacional com dívidas tributárias para se regularizarem, sob pena de serem excluídas do regime a partir de janeiro de 2018. Mês seguinte, foi aprovado o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), pela Lei 13.496. Garantiu-se, às médias e grandes empresas, condições para a renegociação de seus débitos junto ao Governo Federal em até 180 meses, redução de juros de até 90% e de até 70% das multas. A Frente Parlamentar Mista da Micro e Pequena Empresa incluiu os micro e pequenos no programa, mas o Executivo vetou o Pert do Simples Nacional (Pert dos Pequenos). É sobre a rejeição desse veto que falaremos.
A Constituição traz uma ação afirmativa com tratamento favorecido e juridicamente diferenciado às micro e pequenas empresas. O artigo 179 diz: “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
Na mesma linha, o artigo 170, IX, tem como princípio da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Já o artigo 146, III, “d” reza: Cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do ICMS (artigo 155, II), das contribuições sociais previstas no artigo 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o artigo 239 (PIS/PASEP).
O Simples Nacional, e o Pert dos Pequenos, não vieram para os privilegiados. Vieram para as mentes inquietas que, não querendo ser empregados, reclamam o direito de empregar. Pequenos empreendedores, agentes silenciosos de uma prosperidade responsável por 54% dos empregos no Brasil[1]. Pedem, eles, o cumprimento da Constituição. “Tratamento favorecido”, está registrado.
Os desmandos do poder brecaram um país que parecia ter decolado. Os negócios foram afetados. Ao contrário de pôr fim a empregos, microempresários e empresários de pequeno porte preferiram seguir adiante. Suas finanças, todavia, se combaliram. Veio a confissão de débitos tributários sem condições de pagamento nos termos reclamados pelo Estado. Os grandes tiveram a chance de reorganizarem seus compromissos tributários com o Pert. Os pequenos, não. Os grandes já haviam tido outras inúmeras oportunidades. Os pequenos, apenas uma[2].
Sufocados, esses micro e pequenos empresários se voltam à Casa da Democracia para, por meio dos seus representantes, rejeitarem o veto presidencial. É o resgate do princípio no taxation without representation,que, no Brasil, dimana da Constituição. Diz o artigo 1º, parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Assistir omisso a agonia desses contribuintes violaria o dever de guarda do qual se reveste cada deputado federal e senador. Exercendo, respectivamente, os deputados, “o dever de manter, defender e cumprir a Constituição”; e, os senadores, o de guardá-la, alternativa institucional não parece há que não seja a rejeição do veto presidencial.
Para Liam Murphy e Tomas Nagel, em estudo clássico, “os impostos não são mero meio pelo qual são pagos a estrutura do governo e o oferecimento dos serviços públicos. São, isto sim, o instrumento mais significativo pelo qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica”[3].
Quanto ao tratamento tributário a ser dispensado aos micro e pequenos empresários, a Constituição estabelece uma política de discriminação positiva, uma ação afirmativa. “Como se vê, o tratamento diferenciado e favorecido se insere no contexto das políticas públicas que se prestam para dar concretude aos preceitos constitucionais já enumerados, pois, além de a lei complementar instituir um regime simplificado - denominado, conforme seu artigo 12, de Simples Nacional -, também traz importantes regramentos diferenciados que as prestigiam e as discriminam positivamente, precipuamente no que toca às licitações públicas, às relações de trabalho e ao estímulo ao crédito, à capitalização e à inovação tecnológica, ao associativismo, às regras de inclusão e ao acesso à justiça, dentre outros benefícios”[4], anotou o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do pleno. Na oportunidade, o ministro Gilmar Mendes registrou: “Cria-se um mecanismo de acesso para as micro e pequenas empresas, que é sugerido, recomendado e determinado pela Constituição aqui num modelo específico inclusive de ação afirmativa em prol das pequenas e microempresas (...)”[5].
Os pequenos reclamam a manutenção da vontade do Poder Legislativo que foi a de lhes conceder um parcelamento nos exatos termos do que se fez com os grandes. Segundo o STF, “não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta”[6].
O veto ao Pert dos Pequenos, por negar vigência aos comandos constitucionais que reclamam tratamento favorecido e juridicamente diferenciado visando a incentivar as micro e pequenas empresas e, além disso, por conferir tratamento anti-isonômico entre micro e pequenos quando comparados aos médios e grandes, promove um quadro de injustiça tributária e, por isso, deve encontrar, no Congresso Nacional, limites que previnam os pequenos de suportarem arbitrariamente esse fardo pesado e injusto.
Por: Ricardo César M. Barretto e Saul Tourinho Leal
1 Para a consulta acerca dos dados relativos às micro e pequenas empresas: https://m.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Anexos/anu%C3%A1rio%20do%20trabalho%202015.pdfA esse respeito, o STF anotou: “Tais considerações me levam a registrar a projeção de crescimento do número de pequenas e microempresas optantes pelo Simples Nacional - conforme indicativos do SEBRAE, a partir de dados da Receita Federal - de 2,9 milhões em 2008 para 8,5 milhões em 2014 - incluídos na projeção os microempreendedores individuais”. RE 627.543, Min. Dias Toffoli, DJe 29/10/2014. Cf. p. 17 do acórdão.
2 A Fazenda Nacional, por autorização ou determinação legal, promoveu nos últimos 10 anos seis programas especiais de parcelamento de débitos tributários para empresas não optantes do Simples. Todos com ampliação de prazos, que vão de 120 a 240 meses, redução em até 100% de multas e juros. Também o fizeram os fiscos dos Estados e Municípios em todo o País. Um deles, inclusive, para times de futebol.
3 O Mito da Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.
4 RE 627.543, Min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 29/10/2014. Cf. p. 10 do acórdão.
5 Uma ação afirmativa constitucionalmente prevista em favor das micro e pequenas empresas simboliza, segundo Ricardo Lodi, que “o adequado tratamento legislativo ao tema, não deve visar apenas atender ao critério de justiça, que determina uma tributação compatível com a menor capacidade contributiva dessas empresas. O legislador constituinte exige mais. Quer que o Estado estimule o crescimento dessas empresas de forma a transformá-las em um dos principais pilares do nosso desenvolvimento econômico, sintonizado com a distribuição de riquezas”. Temas de Direito Constitucional Tributário. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. p. 395.
6 ADI 1643, Min. Maurício Corrêa, Pleno, DJ 14/3/2003.
Ricardo César Mandarino Barretto é advogado do Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
Saul Tourinho Leal é advogado do Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia. É doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP. Foi clerk na Corte Constitucional da África do Sul.