Publicado em 01/2015. Elaborado em 01/2015
Por:Renata Elaine Silva
Mesmo diante de sua realidade jurídica, o direito nos permite fazer uma comparação com o jogo, comparação metafórica com fins de retórica e persuasão, diante da facilidade de aceitação social das regras do jogo. Por mais que as regras do jogo, inicialmente, possam parecer distante da realidade jurídica, suas semelhanças são várias e talvez apreender o direito como um conjunto de regras que permitem jogar o jogo jurídico de forma segura é uma forma complacente de aceitar os comandos normativos.
A comparação está longe de ser em relação ao aspecto lúdico do jogo, mesmo porque o direito nada tem de lúdico, ao contrário, é sério, sisudo e formal, porém ambos são elementos sociais. Aceitar a regra de um jogo de futebol ou de um jogo de pôquer é perfeitamente abstraído pelo inconsciente das pessoas. Na outra ponta, aceitar o dever de contribuir com parcela do patrimônio para conviver em sociedade, não é. Toda relação humana deve ter regras, sem as quais não servem aos fins para os quais foram criadas.
Como as regras da decadência e da prescrição impõem limites temporais para o mundo do direito, isto é, impõem um fim ao direito, retirando-o do seu titular, enfrentam maior resistência dos seus destinatários em comparação às demais normas. Daí exsurge a relevância de uma comparação enfática e metafórica. Sem retirar a possibilidade de todas as demais normas jurídicas de também permitirem tal comparação. Nosso propósito foi comparar as regras do direito com as regras do jogo para enfatizar sua importância e sua necessidade de observância. Mesmo porque tais normas serão sempre aplicadas a todas as demais normas do sistema, é o fenômeno que chamamos de paradoxo da inclusão da norma na norma.
2. O conceito de decadência e de prescrição: fim do tempo do direito
Além da comparação acima das regras do direito com as regras do jogo é importante destacar outro ângulo de análise das regras de decadência e de prescrição, sem, contudo, negar a estrutura formal da norma jurídica da decadência e da prescrição, observamos o tempo e o modo pelo qual as normas de decadência e de prescrição veiculam esse tempo no direito.
As normas de decadência e de prescrição carregam em seus conteúdos semânticos o limite do tempo de um direito, não só o justo ou preciso período do tempo para praticá-lo, mas o seu fim, aquele tempo que demarca a extinção do direito. O legislador é o deus do tempo que, em nome de um sistema seguro, põe fim ao tempo do direito impedindo a perpetuação das relações jurídicas.
O fim do tempo do direito é a forma pela qual vemos os institutos da decadência e da prescrição em matéria tributária. A decadência é fim do tempo para se constituir o crédito tributário, e a prescrição é o fim do tempo para se exigir o crédito constituído.
Os prazos de prescrição e de decadência são determinados. São limites temporais positivados pelo legislador e escolhidos para impedir a perpetuação das relações. Medir o tempo deixa de ser um elemento apenas social e passa a ser criação jurídica do homem competente. Enquanto no mundo do ser não temos como saber quando será o fim, no sistema jurídico há a necessidade de previsão do seu fim.
Por meio dessa análise, é possível dizer que ao determinar um termo final para o direito ao crédito tributário garantimos a segurança do sistema jurídico por meio da preservação da confiabilidade, da previsibilidade e da estabilidade às relações sociais. É ter a certeza de qual norma será aplicada em determinada situação, isto é, de qual é a regra do jogo, ou melhor, regra do direito.
Inúmeros conceitos podem ser encontrados sobre a decadência e a prescrição, dentre eles: (i) punição pela inércia do titular do direito; (ii) perda de prazo de um direito; (iii) perda da competência administrativa; (iv) perda do prazo de ajuizar uma ação de cobrança. Isso porque tais elementos são efeitos que atingiram o crédito. Entendemos que tais efeitos (com exceção do primeiro) jamais serão negados, porém apenas serão desencadeados quando da aplicação das normas de decadência e de prescrição, mas não são as próprias normas.
A decadência e a prescrição devem ser conceituadas pelos elementos que elas contêm, ou seja, o fim do tempo do direito de constituir ou de exigir o crédito tributário.
Com relação ao item (i), punição pela inércia do titular do direito ou da ação, afirmamos com convicção que as normas de decadência e de prescrição carregam o fim do tempo do direito e não podem ser entendidas como punitivas e sancionatórias, a função não é punir e sim garantir a segurança jurídica do sistema.
3. Decadência e prescrição como hipótese de extinção do crédito tributário
Com a aplicação do efeito extintivo previsto no art. 156, V do CTN, o crédito tributário deixa de existir, desaparece, perde a juridicidade, deixando de ser crédito tributário. O crédito é o elemento perseguido pelos institutos da decadência e da prescrição, isto é, decadência e prescrição atuam no tempo em que devem ocorrer elementos do crédito para que não haja o seu perecimento, o primeiro da constituição, o último da satisfação. Por isso, sua normatização como forma extintiva do crédito considera o tempo para sua constituição e o tempo para sua exigibilidade com satisfação do mesmo.
Veja que a decadência apenas se opera porque o crédito ainda não foi constituído, a competência administrativa ainda não foi exercida, por isso se extingue antes da constituição (do crédito). Não entendemos que a decadência esteja mal colocada como forma extintiva do crédito. Nossa posição se fundamenta no modelo teórico que adotamos: a decadência é o fim do tempo da constituição no crédito. Na decadência e na prescrição a extinção ocorre justamente porque a crédito não foi constituído e exigido no tempo do direito. Logo, extingue antes de se alcançar o crédito.
A ocorrência do lapso temporal que gera o efeito extintivo do crédito (constituição ou exigibilidade), que é chamado de decadência e de prescrição a depender do momento em que ela ocorre.
4. Natureza jurídica das normas de decadência e de prescrição no direito tributário
Outra questão relevante, mas que a doutrina ainda não consente em firmar é qual a natureza jurídica dos institutos prescrição e decadência: direito processual ou direito material. Delimitar a natureza jurídica desses institutos nos permite estabelecer como as normas devem ser aplicadas e a qual tratamento jurídico devem se submeter.
Considerando os argumentos e as justificativas que traçamos até este momento, apenas nos resta enfatizar que defendemos a natureza de direito material das normas que cuidam dos institutos da decadência e da prescrição.
Somente ressaltamos que normas de direito processual também podem delimitar a matéria, desde que não interfira em seu prazo, criando hipóteses de suspensão, impedimento ou interrupção. Podemos usar como exemplo a norma do art. 174 do CTN, que é norma de direito material, e a norma do art. 40, § 4º da Lei 6.830/1980, que estabelece que o juiz pode “reconhecer” a prescrição de ofício como norma de direito processual.
As normas de decadência que estabelecem a medida do tempo e sua aplicação são normas de direito material. A decadência restringe a aplicação de um direito, qual seja, de constituir o crédito tributário, de fazer nascer o direito, que em matéria tributária é representado pela constituição do crédito tributário da fazenda pública. Ela interfere na formalização e na individualização da relação jurídica. Caso esse procedimento não seja realizado dentro do limite temporal, por meio de linguagem competente, deixa de ser tributo, extingue-se, perde a juridicidade, o que imprime uma natureza eminentemente material ao instituto.
A prescrição observa a mesma sorte de direito material. Ela também restringe a aplicação de um direito, qual seja, de exigir o crédito tributário, ou seja, de buscar por meios próprios (administrativo e judicial) o direito ao crédito constituído, objetivando sua satisfação. Ela protege o direito que tem o fisco de exigir o crédito, controla o tempo da exigência do crédito (direito material), não apenas a possibilidade de ação. Ratificamos que se os efeitos da prescrição fossem apenas processuais, o direito não seria extinto, e o objetivo do instituto, que é a pacificação das relações sociais, não seria alcançado o que permitiria a consolidação da segurança jurídica.
Com relação à prescrição, o problema de delimitar o conceito para o Direito Tributário é mais complexo em comparação à decadência porque, historicamente, a discussão sempre foi calorosa, como vimos nos antecedentes deste capítulo. O entendimento sempre foi no sentido de que a prescrição afeta o direito processual, não diretamente o direito material, posição que evoluiu no Direito alemão e no suíço. Foi o Direito italiano que, nas disposições do Código Civil de 1942, estabeleceu que a norma de prescrição não afetava de forma extintiva apenas a ação, mas o direito dela decorrente.
No Direito Romano e medieval, o instituto normativo da prescrição sempre foi considerado como fenômeno que se operava no âmbito do direito processual, concluindo que, havendo a necessidade de impor limites temporais no plano processual, seria a norma de prescrição que regulamentaria a situação fática.
Também no Direito Civil brasileiro, o posicionamento vem evoluindo. Caio Mário da Silva Pereira diz que se filia “entre os que consideram que a prescrição implica algo mais do que o perecimento da ação”[2]. No Código Civil de 2002, seu artigo 189 estabelece: “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição [...]”[3], adotando a corrente do Direito alemão. Por meio do enunciado da Lei 11.280, de 16 de fevereiro de 2006 (que alterou as disposições do Código de Processo Civil), quando normatizou que “O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”, (parágrafo 5º, art. 219), que o instituto da prescrição ganhou caráter de instituto de ordem pública[4].
Uma vez que o CTN atribuiu aos dois institutos o efeito extintivo de forma indiscriminada, não deveriam persistir dúvidas entre os acadêmicos do Direito Tributário sobre a natureza dos institutos, mas em um estudo direcionado ao assunto, coordenado por Ives Gandra da Silva Martins, vemos que a doutrina ainda diverge sobre o tema. Alguns autores concordam que o instituto da decadência é da prescrição são institutos de direito material. Divergindo da maioria dos autores do estudo estão Ricardo Lobo Torres, Hugo de Brito Machado, Carlos Henrique Brandão e Edison Carlos Fernandes[5].
Convergindo com nossa opinião, que a natureza das normas de decadência e de prescrição são ambas, normas de direito material, e, também, com Ives Gandra da Silva Martins estão os seguintes autores: Humberto Martins, Sacha Calmon Navarro Coêlho e Eduardo Junqueira, Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Fernanda Guimarães Hernandez, André L. Costa-Corrêa, Hugo de Brito Machado Segundo, Schubert de Farias Machado, Kiyoshi Harada, Octavio Campos Fischer e Jorge de Oliveira Vargas[6].
Apesar de entendermos que pode haver normas de Direito Processual, como exemplificamos acima, não estamos afirmando a existência de uma natureza híbrida das normas, mesmo porque estamos certos da natureza material dos institutos.
Assim, seguindo o fluxo do tempo esperamos ter ligado o futuro para uma nova visão para o tema. É o que queremos por à reflexão.
[1] Resumo da teoria do livro “Curso de Decadência e de Prescrição no Direito Tributário: Regras do Direito e Segurança Jurídica. São Paulo: Noeses. 2013”.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, v. 1, p. 435.
[3] “Evitou o Código a linguagem do direito antigo, segundo a qual a prescrição provocaria a perda da ação. E o fez para evitar o conflito com os conceitos do direito processual moderno, que emancipara a ação de seu vínculo com o direito material da parte e a deslocara para o campo do direito público, onde exerce o papel de direito subjetivo à prestação jurisdicional, qualquer que seja o sentido dado à composição do litígio. Nesse rumo não mais se pode ver a ação como a reação judicial à violação do direito subjetivo, porquanto até mesmo o autor que afinal não se reconheceu como titular do direito invocado contra o réu, teve ação. Na ótica do direito processual ação é, pois, um direito autônomo e abstrato, que se satisfaz com a prestação jurisdicional (direito à sentença de mérito), não importa em favor de qual dos litigantes. O titular do direito prescrito não perde o direito processual de ação, porque a rejeição de sua demanda, por acolhida da exceção de prescrição, importa ela mesma, uma sentença de mérito (art. 269, IV do CPC).” THEODORO JÚNIOR, Humberto. Descrição científica entre prescrição e decadência: um tributo à obra de Agnelo Amorim Filho. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 94, n. 836, p. 49-68, jun. 2005, p. 54.
[4] Sempre que uma matéria é chamada de ordem pública significa dizer que foi estabelecida por considerações de ordem social, não diz respeito ao interesse exclusivo da parte, e sim de uma sociedade. Nesse contexto que a segurança e justiça jurídica precisam existir.
[5] MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Decadência e prescrição. São Paulo: Revista dos Tribunais/Centro de Extensão Universitária, 2008 (Pesquisas Tributárias, nova série, n. 13).
[6] Ibidem, p. 35.